Fomos relembrados pelo Thiago Paiva da beleza de Parabelo, composto por José Miguel Soares Wisnik e Tom Zé para um espetáculo do Grupo Corpo, daqui de BH. O significado original da palavra Parabelo é o nome de uma pistola automática, outrora usada pelo exército alemão.
O belo texto de Tom Zé, publicado, na época no Estado de Minas, explica o porque da música e do nome:
“Co-autor da música de “Parabelo”, o Grupo Corpo estréia dia 17, no Teatro Municipal de São Paulo, Tom Zé explica os ritmos que buscou no Nordeste para, junto com o compositor José Miguel Wisnik, oferecer ao coreógrafo Rodrigo Pederneiras a sonoridade de sua nova invenção.
Creio não ser lesa-patriotismo misturar Thomas Mann ao Nordeste. Seja porque o escritor, apesar de alemão, tem, por parte de sua mãe, Dona Júlia, seu ramo de origem brasileira, seja porque a associação de idéias se alimenta do imprevisível.
O fato é que a ligação me ocorreu através de seu personagen Hans Castorp, do romance A Montanha Mágica. Este, depois de algum tempo vivendo em Davos-Platz, estação climática para tuberculosos, apaixona-se por uma nobre russa, Clawdia Chauchat, também em tratamento. Hans Castorp, depois de muito hesitar, rompe as formalidades do sanatório, conseguindo aproximar-se da mesa dos russos, na febril curiosidade de pelo menos ouvir a voz da amada.
É aí que acontece o sertão.
Ouvindo a língua russa, que, comparada ao alemão, é pobre de consoantes, Hans Castorp admira-se de que um falar daqueles, ‘‘sem ossos’’, segundo sua expressão, possa manter-sede pé.
Então eu fiz a pergunta-espelho: como é que o nordestino se mantém de pé, naquela penúria, naquela miséria, naquela subalimentação de 400 anos ? Conclui: devem ser os ritmos, os ritmos musicais nordestinos.
Os três principais alimentos Nordeste são designados: farinha de mandioca, carne seca e ritmo.Mas é o ritmo que nos mantém de pé, verticais, que faz o papel dos ossos.
Quando ficamos insulados e pobres, no sertão do Brasil, defrontamos um paradoxo: amávamos a herança cultural de nossos avós portugueses-civilizados pelos árabes na Idade Média, ao contrário do restante da Europa, educado pelos bárbaros cristãos, godos, visigodos, bretões…
Assim, amando a cultura moçárabe daqueles avós, mas analfabetizados pela penúria, nosso artifício vital foi falar cultura, conversar cultura, dançar cultura. Passamos a plantar leituras de concepções metafísicas em acontecimentos do cotidiano; a fazer pentimento, sobrepondo à paisagen da caatinga chaves visuais do conhecimento esotérico; a montar eixos de filosofia na sintaxe de uma língua têxtil, de um falar que compõe cosmogonias (ver isso também nos Gerais de Guimarães Rosa).
Ah-pois, meu senhor, essa ossatura que nos mantém de pé, a espinha dorsal que nos sustenta a verticalidade e nos confere uma postura semelhante à de outros humanos, enfim, as consoantes de nossa língua, ou melhor, de nossa vida, é o ritmo. Os ritmos musicais do Nordeste.
Ele é o núcleo mais concentrado: a cápsula da mais densa potenciação cultural do nordestino. Era para nós como uma face do Sagrado. No Nordeste, o ritmo é Deus desidratado.
E foi Thomas Mann, esse fluminense alemão,que me pôs no rastro da ossatura rítmica nordestina, que é a obra de Jackson do Pandeiro. José Miguel Wisnik compôs, comigo, um edifício sobre tais alicerces e trouxemos esses ritmos ao Paralelo.
No Nordeste o ritmo é Deus desidratado.”
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